Aqueles olhos grandes, as sobrancelhas gigantes e um sorriso estupendo compõem um rosto que desfila sobre uma cama de quatro roldanas, esconde uma história de angústia, dor, desesperança, esperança e muito amor.
Geny Soares e Ananias Lima: um casal muito feliz que lavrava a terra de sol a sol e construíam uma vida em comum ao lado dos sete filhos na zona rural de Itaporã.
Certo dia o garoto de olhos grandes amanheceu doente, a febre como o Vesúvio obrigou Geny, uma mulher pequenina e doce a levar a criança até "um certo" doutor da cidade.
O médio mal olhou para a criança e lascou um diagnóstico. Receitou uma injeção. Imediatamente a pequena mãe foi com suas parcas moedas até a farmácia para medicar o garoto. O filho do farmacêutico parece que tangido por uma força sobrenatural negou-se a aplicar o medicamento. Sobrou para o velho farmacêutico o procedimento.
Foi a partir deste momento que as vidas de Geny e Ananias começaram a radicalmente mudar. A mãe abandonou a doçura do seu coração e tornou-se uma mulher amarga e empedernida. Passaram-se poucos minutos e a criança começou a sofrer um grande choque. Parou de andar. Geny chorou lágrimas lancinantes vertendo num riacho sinuoso que lhe acompanha até hoje.
O garoto é Elias que recebeu este nome em homenagem ao profeta que em toda a sua existência lutou arduamente por um Deus único condenando todas as formas de sincretismo do seu povo. Assim como o profeta o filho de Geny “surgiu como fogo e cuja palavra queimava como uma tocha” para, mesmo paralítico, iluminar uma família paupérrima de tudo. De tudo mesmo! Tal o profeta, Elias parece não querer morrer .Prefere o arrebatamento como sina.
Elias nasceu com o corpo perfeito em 29 de novembro de 1971. Aos noves meses de idade já caminhava pelo quintal, corria atrás das galinhas e dos porcos. Era uma criança feliz como todas as outras. Andou muito por apenas um mês. Antes do primeiro aniversário a tragédia: um erro médico mudou para a vida inteira as vidas de seus familiares.
Geny, a pequenina se agigantou. Ananias, um mineiro paciente de Montes Claros, mal consegue abrir a boca de tão "boa gente”, de tão calmo, de tão paciente. Geny assumiu a paternidade de Elias enquanto Ananias como uma fêmea com filhotes foi à luta em busca de alimentos para a numerosa prole.
Analfabetos. Sabendo apenas ler o mundo, os olhares e o pensamento das pessoas, Geny e Ananias resolvem mudar para Dourados. Era o ano de 1980. Ananias deixa o roçado, o trabalho duro nas fazendas e pedra-sobre-pedra aprende a amassar o cimento, assentar os tijolos e a obra tornou o campo de batalha na construção do seu ganha-pão.
Enquanto isso Geny cheia de sacolas saia logo ao sinal do primeiro raio de sol, empurrando uma cadeira de rodas que mais parecia uma “cama” em busca de ajuda para criar seus sete filhos. Para a sociedade Geny ia mendigar. Na cabeça da mãe desesperada: - Ia buscar ajuda! O sol ia embora e Geny voltava para casa.
Geny ao chegar a Dourados com o marido, os filhos, panelas e roupas fez uma promessa para si mesma. – Nunca vou pagar aluguel e terei a minha casa própria! No principio foi morar de favor na casa de um conhecido. Pouco tempos depois com o dinheiro conseguido nas ruas comprou a prestação o terreno onde mora no Jardim Santa Maria.
Todos os dias centenas de crianças que chegam para estudar na Escola Laudemira Coutinho de Melo logo vê sorrindo Elias na casa 855 da Rua Ayrton Senna. Tão veloz quanto o piloto de Fórmula Um, Geny conseguiu ao longo de 37 anos cuidar amorosamente do seu filho nunca deixando faltar nada. Demasiadamente o que sobra é amor que nutre por ele.
Com as esmolas logo Geny construiu uma casinha de madeira onde mora até hoje. Os seis filhos cresceram e desapareceram. Casaram-se e tem suas próprias famílias. No casebre estão apenas Geny, Ananias e Elias. O tempo foi passando e o coração da mãe começou novamente a amolecer e a desesperança deu lugar à fé. É uma evangélica fervorosa. O marido mais ainda.
Elias hoje está com 37 anos. É um homem barbado. É uma criancinha. Depende da mãe para tudo. Quando criança a união entre os sete irmãos era grande, um cuidava do outro. Agora Elias só tem neste mundo os pais. Ele chora quando pensa na possibilidade de ver sua mãe morta. Geny pede todos os dias: - Não me leve antes do meu filho!
Durante estes trinta e sete anos em que carrega o filho paralítico, Geny não se cansa de contar sua história e de como o médico cometeu tão grave erro. O médico já morreu e Geny prefere nem lembrar dele. A mãe de Elias rememora passagens tristes de sua vida, de sua luta para cuidar do seu filho. Lembra-se do preconceito das pessoas, das dificuldades encontradas por falta de mobilidade urbana.
Sofria para entrar no ônibus. “As pessoas tinham que me ajudar a erguer a cadeira de rodas nos ônibus”. Ela relembra com tristeza de um sem número de motoristas de ônibus que nem paravam no ponto quando via a cadeira de Elias. Lembra também das pessoas que lhe chamavam de: preguiçosa, vagabunda, disso e daquilo!
- Eu era mais uma mãe que lutava pelo direito de seu filho viver! - diz Geny que hoje é uma fortaleza e seus olhos como minarete lacrimejam quando começar a falar do que sofreu na “língua” dos fiéis da igreja evangélica a que pertencia.
Geny conta que procurava em todos os lugares cura para Elias. Queria ver ele andando. Se falassem para ela que tomar chá de Mafumeira o curava ela plantava uma muda em casa. Hoje o quintal de Geny parece uma farmácia. Tem de tudo. Tem remédio para tudo. Até para as almas despedaçadas e sem esperança que lhe procuram para conversar.
Numa dessas idas e vindas na busca de cura, Geny fez o que ela chama de simpatia. Na verdade uma “macumbazinha” ensinada por um conhecido do bairro. Ela levou o Elias, ainda na primeira infância, para fazer aquilo que poderia fazê-lo andar. Pegou o bucho de uma vaca que acabara de ser abatida e colocou o garoto dentro. Todo sujo de sangue, Elias ficou oito dias sem banho. Esse era o processo de cura. Depois deste prazo a simpatia estava feita e o menino curado.
Geny mal sabia o que ia acontecer na sua vida. Sua vida e sua fé foram visceralmente dilapidadas. O pastor da sua igreja descobriu o feito e lhe condenou ao “degredo eterno”. Aquilo era uma heresia e não era coisa de Cristão. Magoados Geny e Ananias se afastaram da igreja, mas tempo tempos com a fé renovada foram procurar outro agrupamento evangélico que aceitou a história.
- "Se eu soubesse que era coisa errada não tinha feito a simpatia”, diz a mãe ao mostrar a identidade do filho. Elias é um cidadão e mostra com orgulho o documento. Ele é o sul-mato-grossense e brasileiro número 001191562.
Há quase um ano Elias perdeu o seu direito à cidadania. Ele perdeu o direito de receber o chamado “benefício de prestação continuada”, garantido pela LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social). A pobre do casal aumentou e a aposentadoria de Ananias não banca todas as despesas. A família está em estado de penúria. A alegação para retirar o beneficio de Elias é que a mãe pede esmolas. É o fim. Ou o começo de um novo tempo para Geny busca por justiça.
A família de Elias se completa com um cavalo para puxar a carroça da família. Certo dia Ananias saiu com a carroça e ao passar perto de um fico caído à beira da rodovia o cavalo morreu eletrizado. Elias pediu para o pai comprar um novo cavalo com o dinheiro de seu benefício da “Assistência Social”.
Foi aí que Ananias comprou pelo valor de um salário mínimo Carumbé, um cavalo franzino que puxa uma carroça de quatro rodas. Desgraça pouca é bobagem diz o ditado. Uns meses atrás Carumbé foi roubado e Elias não pode mais passear pelas alamedas dos bairros ricos de Dourados. Os seus olhos grandes fitavam apenas as telhas de barro de sua casa.
Dias e dias se passaram. Ananias conta que pegou a bicicleta e saiu à procura de Carumbé quando foi atropelado. Foi parar no hospital. Após dois dias internado Carumbé apareceu. Virou caso de polícia. Um irmão de Elias viu o cavalinho puxando uma carroça: era o Carumbé e chamou a polícia. Na delegacia descobriram que o quadrúpede foi roubado e escondido por alguns meses na Reserva Indígena. A história chegou ao fim depois de cinco meses de desparecimento.
Hoje Carumbé está saudável e puxando a carroça prá-lá-prá-cá com Elias, Geny e Ananias. Nestas quase quatro décadas de amor por Elias, Geny continua sonhando em concluir sua casa de alvenaria que há vinte anos está sendo construído. Por falta de dinheiro e de saúde o pedreiro Ananias há muito tempo parou de cimentá-la.
Geny ao longo desta caminhada conta que recebeu o carinho e a ajuda de muita gente. Ela lembra com carinho do empresário Roberto Razuk que há mais de vinte anos deu para seu filho uma cadeira de rodas feita antiga Serralheria Berbel. A cadeira existe até hoje e depois de muitas roldanas substituídas continua carregando Elias para todos os cantos.
Ananias continua sereno e tranqüilo. Órfão de pai aos nove anos e de mãe aos onze foi largado no mundo, de fazenda em fazenda até parar no sul do antigo Mato Grosso onde conheceu João Dourado que lhe deu guarida. Para Ananias João foi seu verdadeiro pai e lembra com carinho do médico Norival Dourado, filho do fazendeiro, considerado um grande amigo até os dias atuais.
Geny, Ananias, Elias e Carumbé constituem uma família que não pode morrer e assim como o profeta dever ser arrebatada de uma só vez. Por quê? Se o governo cortou o benefício de Elias que ajuda nas despesas da família quem é que vai cuidar do “garoto quase quarentão” quando Geny se for para o outro lado?
Quem vai conseguir de volta o dinheiro de Elias? O caso está na Justiça. Será que a justiça será feita? O erro médico que provocou a paralisia do corpo de Elias foi a energia que envergou mas não conseguiu quebrar o corpo de Geny esta “supermãe”, mais uma heroína anônima que luta pela vida do filho, clama por justiça e, por incrível que pareça, da mesma forma que seu marido e seu filho não poderão ler esta história.
Continuam A-N-A-L-FA-B-E-T-O-S numa cidade que ganhou uma magnificente Universidade Federal e já conta até com um Mestrado em Educação.
Até quando, enquanto a corrupção grassa na política Guaicuru, a sociedade ficará cega, surda e emudecida. Quantos Elias e Genys existem espalhados por ai sem instrução, sem comida, sem esperança enquanto a prevaricação, a lascívia e a imoralidade avançam nos mais altos píncaros dos poderes constituídos.
E o Elias?
Ele é forte e vai viver muitos anos. E como dizia o poeta riobrilhantese Moacir Ramires: “Os ainda vivos virão como sou duro!!!”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário