SUA CONEXÃO

sábado, 3 de outubro de 2009

DANDO-ME CONSENTIMENTO PARA ESQUECER

O depoimento de uma escritora que coletou o esperma do marido no leito da morte, planejando ter um filho dele

Elizabeth Scarboro/ NYT

Foto: NYT Ampliar

"Se ele tivesse vivido 50 anos atrás, não haveria máquinas para mantê-lo vivo, sem procedimentos para extrair o esperma"

A carta está na minha mesa faz alguns meses, apesar de o remetente – o departamento de urologia de um hospital – estar aguardando a minha resposta. O departamento está de mudança e, enquanto cataloga o que precisa ser levado para o novo lugar, encontrou algo que pertence a mim. Melhor, cerca de 50 milhões de coisas que pertencem a mim: uma amostra de esperma congelado do meu falecido marido.

A carta está a um metro e meio de meu garotinho que dorme, Theo, que está alheio ao fato de que nunca pensei em ter filhos com ninguém além do pai dele. Um dia ele saberá de tudo.

Cogito se lhe direi que quando era mais jovem nunca quis ter filhos, que me casei com um homem, Stephen, que supostamente não podia ter, que esse era o menor de nossos problemas. Cogito se lhe direi sobre a fibrose cística, sobre como Stephen sabia quando o conheci com 17 anos, e pulava escondido em piscinas e ia para terraços com o resto de nós; ele teria sorte se vivesse até os 35.

Stephen tinha 19 anos quando disse que não podia ter filhos. Eu estava na escola em Chicago, ele estava em Berkeley, e estávamos apaixonados como adolescentes – não tínhamos ideia que estaríamos juntos lá adiante. Ele fora ao hospital por uma infecção respiratória, e os médicos haviam descoberto sua esterilidade, surpresos de que ninguém lhe havia dito isso antes.

Stephen considerava isso uma boa notícia; ele não queria filhos mesmo, e agora não teria que se preocupar com controle de natalidade. Ao telefone ríamos de todas aquelas viagens desnecessárias à farmácia.

Sete anos depois, em um hospital de Boston, Stephen conheceu um cara com fibrose cística que tinha um filho. A esterilidade dos homens com a doença, descobriu-se, era mais diferente: não é que não podiam produzir esperma, que não tinham o canal deferente ou ele estava bloqueado, prevenindo a concepção por meios naturais.

Planos de família
Nessa época tínhamos 26 anos e estávamos casados. Sempre tinha dito que não ia casar, e me preocupava com a doença de Stephen. Mas ele me fazia feliz, e queria estar com ele o máximo que pudesse. Na verdade, ao ouvir a notícia de que virar pai podia não estar completamente fora da questão, desatamos os nós do futuro que imaginávamos e abrimos espaço para a possibilidade de uma criança.

Esse futuro soava ótimo, ainda que complicado e distante. Stephen estava na lista de espera por um transplante duplo de pulmão. No raro dia em que eu imaginava uma família, me preocupava que meus filhos hipotéticos me odiariam por trazê-los ao mundo do qual o pai podia desaparecer em breve. Entretanto, na maioria das vezes – mesmo depois do transplante – não pensamos sobre crianças. Absortos em nossa vida cotidiana, não conversávamos muito sobre o futuro.

Mas conversávamos muito sobre a morte em um nível que estávamos quase confortáveis com ela, como se ao tê-la bem ao nosso lado pudéssemos domesticá-la, cortar-lhe as garras. Como se ao falar sobre ela, fazendo piadas, vendo a vida à luz dela, morrer aos 30 seria normal e os anos além seriam um extra.

Por muito tempo, pensava isso sobre envelhecer, mesmo sendo eu a saudável. Meu estômago caiu quando escutei brindes de casamento que mencionavam netos. Não passei filtro solar. Pensei que, se tivesse rugas, eu as consideraria pequenos azares de minha boa sorte.

Agora olho no espelho, irritada com meu eu jovem, e me sentindo culpada de minha irritação. É uma traição com Stephen sentir qualquer coisa além de alegria de envelhecer. Como se a alternativa fosse permanecer jovem. Ainda posso imaginar a maneira que ele olhava para os casais idosos, a inveja no rosto. Mas quem sabe: se ele tivesse chegado aos 30, ele poderia ter olhado no espelho também, vendo os fios de cabelo, estremecendo na própria descrença.

Se Stephen pudesse olhar dentro de minha vida, ele entenderia a ligação que tenho que fazer sobre a carta. Ele me veria, no fundo da minha vida com meu segundo marido, com nosso filho, Theo, e com a filha de colo.

Segunda chance
“Tem espaço”, disse meu marido anos antes, referindo-se ao espaço para o meu passado em nosso presente, para a família de Stephen na nossa família, para a confusão da situação. E talvez se ele não tivesse dito isso, se tivesse sido menos abnegado e mais possessivo, eu teria tido que esquecer minha vida antiga completamente. Mas eu ainda estava sofrendo quando o conheci, e ele provavelmente percebeu que era tudo de mim ou nada.

Ainda assim, ele tem seus limites. Estávamos juntos já poucos meses quando a amostra congelada apareceu. “Você provavelmente deve saber”, ele disse, “que não estou pronto para isso”.

E na verdade foi um alívio; eu tampouco estava pronta.

A coleta do esperma
Stephen estaria pronto para isso? Afinal de contas, quando a decisão de extrair o esperma foi tomada, ele não estava mais lúcido, não era parte da discussão. No dia em que estava morrendo, um amigo sugeriu isso, e no meio da perda parecia uma grande ideia – inapropriada e engraçada, mas séria também – uma forma de não permitir que a morte levasse tudo.

Mesmo que Stephen não estivesse consciente o bastante para responder, perguntei o que ele achava, e imaginei-o gemendo. Depois imaginei-o se curvando – o procedimento, a aspiração de esperma, envolvia uma agulha. É desconcertante como tomei a decisão tão facilmente, mas não havia tempo para pensar.

Os médicos ficaram surpresos, mas dispostos. Eles se sentiram péssimos por mim e queriam ajudar de todas as formas. Eles também sabiam que, enquanto a decisão de tirar o esperma tinha de ser tomada rapidamente, a decisão de usá-lo receberia a contemplação que merecia. Tinha de consentir com uma espera de um ano.

O médico de Stephen arranjou uma reunião entre os advogados do hospital e as duas famílias, sendo esse material clássico da lei. Os advogados me olharam gravemente – minhas bochechas ainda estranhamente cheias aos 29, meus jeans apagados, um visual como se tivesse passado a noite em claro. Eles começaram um discurso duro, querendo certificar-se que eu entenderia a seriedade disso.

O médico de Stephen me perguntou sussurrando se eu estava com frio. Antes que pudesse responder ele colocou o casaco em meus ombros. Então os advogados mudaram o tom, dando a mim respeito inadvertido, agora que tinha um estetoscópio balançando do bolso.

Decisões
Fomos para a mesa de conferência. Minha mãe e a mãe de Stephen disseram que ele certamente ficaria feliz com isso. Meu pai disse, “Nunca ouvi Stephen falar nada sobre filhos, mas ele sempre fazia o que a Elizabeth queria”.

Isso era longe da verdade, mas pensei na hora que sabia qual seria a resposta de Stephen, assim como acredito que sei o que ele diria agora.

Entretanto, a decisão é difícil. Quando se está decidindo como lidar com as posses de alguém amado, uma hierarquia natural se revela: quanto mais perto algo está de ser parte da pessoa, mais complicado é abrir mão. Lembro-me de voltar para casa depois que Stephen morreu, sentada no sofá olhando cada objeto que tinha sido dele e percebendo que todos eles, colocados juntos, não se comparavam à pessoa. Mas essa amostra, isso é o mais perto de ser Stephen do que qualquer coisa pode ser. Apesar de poder ouvi-lo rindo sobre esse pensamento. “Você está brincando”, ele diria. “Você se sente mal pela amostra congelada?”

Mas não consigo evitar sentir-me responsável pelo último fragmento de vida, e quero fazer o certo. É um eco de como me senti quando o médico de Stephen se sentou conosco no corredor e perguntou como queríamos lidar com o fim. A família de Stephen se voltou para mim, e encarei o médico em descrença furiosa. Como em todos aqueles anos de conversas sobre a morte o Stephen nunca havia colocado “Não Ressuscite” em pauta?

De certa forma, percebi que ele tinha, sim. Na noite do transplante, ele me pediu para ser sua procuradora, e eu agarrei a prancheta, me sentindo do mesmo modo quando me sento na fileira de saída de um avião – insegura se faria o trabalho bem-feito, mas não confiando em ninguém para fazê-lo melhor.

Stephen tinha pegado o papel de mim e rabiscado embaixo: “Eu disse para você puxar a tomada”.

Naquele corredor de hospital sabia o que ele queria, e me forcei a assinar a ordem de não-ressuscitação. E agora aqui estou eu, anos depois, defrontada com outro formulário que me pede para falar por Stephen, tanto quanto por mim, apesar de ele ter falecido há anos.

Se ele tivesse vivido 50 anos atrás, não haveria máquinas para mantê-lo vivo, sem procedimentos para extrair o esperma; o corpo dele poderia ter morrido em termos próprios. Mas ele nunca teria vivido até 30 anos.

Stephen viveu e morreu na fronteira da medicina moderna, uma vida que foi complicada, sortuda, terrível e estranha. Talvez tão estranha quanto ao fato de que o estou abandonando não uma, mas duas vezes.

Elizabeth Scarboro é uma escritora de Berkeley, Califórnia, e está escrevendo suas memórias

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