SUA CONEXÃO

domingo, 19 de julho de 2009

ESPÍRITOS DO RIO

Espíritos do rio

Ao caçar no âmago da floresta, os botos aproveitam ao máximo as prodigiosas cheias anuais da Amazônia.

Por Mark Jenkins
Foto de Kevin Schafer
Espíritos do rio

Os botos da Amazônia (Inia geoffrensis) têm poucas semelhanças com os famosos golfinhos. Como eles chegaram até a Amazônia? E por que os machos são cor de rosa?

Os botos nadam por entre a copa das árvores. Curvam o corpo sinuoso, deslizam pelos ramos e se enroscam como serpentes em torno dos troncos canelados. Não se trata de nenhuma paisagem onírica extraída de romance; essa é uma cena real que ocorre na temporada das chuvas no alto Amazonas, a jusante da cidade peruana de Iquitos. O rio inunda a floresta tropical, permitindo que os golfinhos fluviais busquem alimento no meio da mata.

O boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), da Amazônia, afastou-se de seus ancestrais oceânicos há 15 milhões de anos, no período conhecido como Mioceno. Na época, "o nível dos mares era mais elevado", explica o biólogo Healy Hamilton, e partes extensas da América do Sul, incluindo a bacia Amazônica, podem ter sido inundadas por águas rasas e salobras. Quando esse mar interior recuou, segundo a hipótese de Hamilton, os golfinhos permaneceram na bacia fluvial.

Os botos amazônicos possuem testa gorda e um bico magro e alongado, adaptado para agarrar peixes entre ramos emaranhados ou para escarafunchar a lama do leito fluvial em busca de crustáceos. Ao contrário dos golfinhos marinhos, as vértebras do pescoço dos botos não estão fundidas, e isso lhes permite girar a cabeça em ângulos de até 90º, o que facilita sua movimentação. Eles também têm nadadeiras largas, uma barbatana dorsal reduzida (se fosse maior, poderiam acabar entalados) e olhos pequenos - uma espécie de “sonar” que lhes permite identificar suas presas na água lamacenta.

Com um peso que chega a 200 quilos e até 2,5 metros de comprimento, o boto amazônico é a maior das quatro espécies conhecidas de golfinhos fluviais. As outras vivem nos rios Ganges (Índia), Indo (Paquistão), Yang-tsé (China) e da Prata (entre a Argentina e o Uruguai). Todos eles são parecidos, mas as quatro espécies não pertencem à mesma família. Estudos de DNA, realizados por Hamilton e outros, mostraram que os golfinhos fluviais evolveram de cetáceos marinhos arcaicos (a ordem que também inclui as baleias) em pelo menos três ocasiões distintas - primeiro na Índia e, mais tarde, na China e na América do Sul -, antes que os golfinhos marinhos modernos emergissem como um grupo específico. Em um exemplo do que se denomina “evolução paralela”, espécies geograficamente isoladas e geneticamente diferentes acabaram desenvolvendo características similares, pois tiveram de se adaptar a ambientes semelhantes.

Todos os anos os botos amazônicos saem dos canais fluviais e revivem a experiência de seu hábitat primitivo. Na reserva de Mamirauá, onde Tony Martin, da Universidade de Kent, na Inglaterra, vem estudando os botos há 16 anos, dois afluentes do Amazonas inundam milhares de quilômetros quadrados de floresta durante metade do ano, transformando-a em um vasto mar pontilhado de copas de árvores. Martin e sua colega Vera da Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em Manaus, descobriram que os botos do sexo feminino em especial avançam longe na mata - talvez como proteção contra os machos agressivos e de um rosado brilhante. As fêmeas são, em geral, cinzentas. A cor rosada dos machos, na opinião de Martin e Vera, deve-se à cicatrização do tecido da pele.

"Os machos atracam-se com enorme ferocidade", diz Martin. "Eles são brutais. Mordem sem dó a mandíbula, a cauda, as nadadeiras e os orifícios respiratórios de outros machos. Os espécimes maiores estão recobertos de tecido cicatrizado." Apenas um percentual pequeno dos machos adquire tonalidade rosada brilhante, explica Martin, e são eles os mais atraentes para as fêmeas - pelo menos ao longo da temporada de acasalamento, quando as águas recuam para os canais dos rios e espécimes de ambos os sexos são obrigados a conviver juntos.


A cor rosada não é o único recurso dos machos para impressionar as fêmeas. Às vezes agarram com o bico ramos de folhas ou pedaços de galhos, giram o corpo com a cabeça fora d’água, e batem o objeto contra a superfície. Martin descobriu que só os machos carregam objetos na boca, e apenas na presença das fêmeas. Além disso, há uma chance 40 vezes maior de eles brigarem quando adotam esses comportamentos ostensivos. Nenhum outro mamífero, além dos seres humanos e dos chimpanzés, recorre a objetos para se exibir. "É o equivalente de sair por aí dirigindo uma Ferrari", explica Martin.

Os botos não são atacados por nenhum predador, com exceção dos seres humanos. Em dezembro de 2006, o golfinho do rio Yang-tsé, chamado baiji, afinal sucumbiu à poluição, às hélices de barcos, às represas e à pesca desenfreada. Ele tornou-se o primeiro cetáceo a ser declarado "praticamente" extinto. "Sem o baiji, perdemos 20 milhões de anos de evolução independente", comenta Hamilton. O golfinho fluvial do Ganges também corre perigo; só restam poucos milhares em alguns dos rios mais poluídos do planeta.

O boto amazônico provavelmente está em melhor situação. Martin acredita que ainda existam pelo menos 100 mil deles em toda a Amazônia. Mas a tendência geral é preocupante. Na reserva de Mamirauá, a população pesquisada por Martin foi reduzida à metade no decorrer dos últimos sete anos. Eles são capturados para serem usados como isca de bagre, e também acabam sendo mortos nas redes de pesca.

No passado, isso seria inconcebível. No folclore da Amazônia, o boto é uma criatura encantada que às vezes assume aparência humana, saindo do rio para atrair homens e mulheres e conduzi-los a uma cidade mágica submersa. Alguns dizem que ele usa um chapéu para esconder o orifício de respiração e a testa bulbosa. Tais histórias soam incríveis aos ouvidos modernos e, de certo modo, é triste. Pois, para sobreviver no mundo atual, é provável que o boto tenha de fascinar uma audiência bem maior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário