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domingo, 19 de julho de 2009

Tania Menai

Cultura do desperdício: nas trash tours, os freegans encontram alimentos limpos, embalados e dentro do prazo de validade

nada se perde

Manhattan: o paraíso do lixo

Para mudar a mentalidade e os hábitos dos novaiorquinos – cada habitante produz cerca de 3k de lixo sólido por dia – os freegans promovem workshops de conserto de bicicletas, de plantação de horta, de reciclagem de plásticos, de corte e costura e, também, trash tours


Tania Menai, de Nova York - Edição: Mônica Nunes

O americano Adam Weissman, de 31 anos, é inteligente e bem articulado. Vive no Brooklyn, em Nova York, uma cidade que lhe daria infinitas opções de emprego e de consumo. Mas não é isso que ele quer. Pelo contrário. Desempregado por opção, diz que sua profissão é ser revolucionário. Adam dorme no chão de um escritório abandonado, sem banheiro. Recusou-se a fazer faculdade, só anda de bicicleta e jamais entra em lojas, nem mesmo para comprar roupas ou alimentos. Seu estilo de vida e seu radicalismo fazem parte do movimento freegan, crescente nos Estados Unidos e no mundo, com alguns adeptos no Brasil (leia a reportagem O almoço é grátis. Mas é um lixo)

Navegando na contramão do consumismo desenfreado contemporâneo, os freegans (junção da palavra inglesa free ou livre e vegan – pessoas que recusam alimentos derivados de animais) têm pavor de dinheiro: trocam o emprego formal por trabalhos voluntários, vivem em prédios abandonados e lutam ferrenhamente pela morte do capitalismo, pela proteção ambiental e pelo fim da tortura aos animais. “Evitamos ganhar dinheiro, gastar dinheiro, por acreditarmos que o capitalismo é imoral”, diz ele. “Tentamos viver de uma forma que não sustente este sistema”.

Há onze anos adepto do movimento, Adam sonha com um mundo, a esta altura, quase impossível. Sua fala é ininterrupta e imperativa, apesar de contar verdades e estatísticas assustadoras sobre a fome mundial, os desmatamentos e o destino do planeta. “Não tenho cartões de crédito, carro, ou qualquer bem. Minha única despesa é manter minha bicicleta. Não preciso consumir o que a sociedade me impõe”, diz ele, que se transformou num porta-voz do movimento em Nova York.

A cultura do desperdício é o que mais revolta os freegans. Segundo um estudo do departamento de antropologia da Universidade do Arizona, cerca de 14% de comida consumida por uma casa nos Estados Unidos, vai para o lixo. Uma família de quatro pessoas joga fora 600 dólares por ano em alimentos. Isso inclui produtos frescos e dentro da validade. (De acordo com o Instituto Akatu para o Consumo Consciente, um terço dos alimentos comprados pelos brasileiros vai direto para o lixo. Este foi o tema da campanha lançada pela ONG no início deste ano).

Outro agravante é a supervalorização da mão-de-obra no país que torna mais barato jogar uma roupa rasgada fora, do que contratar uma costureira. O mesmo vale para móveis, computadores ou eletrodomésticos. Tudo acaba no mesmo destino: o lixo. Na cidade do seriado Sex and the City, a meca do consumo, 1,5 milhão de pessoas vivem na pobreza – 34% delas tem de optar entre comer e pagar aluguel.

A contradição é tamanha: a mesma cidade produz um lixo sólido de quase três quilos por pessoa diariamente. São caixas, embalagens, garrafas, casacos, brinquedos e até celulares em bom estado. E é por isso, que Nova York tem se tornado o paraíso freegan. “Montei meu apartamento inteiro com mesas, espelhos e cadeiras que encontrei na rua”, diz a americana Dina Netra, mãe de um adolescente. “As pessoas não têm tempo de lidar com o que não querem”, diz ela, que aumentou sua coleção de vinil vasculhando as calçadas. Dina não está sozinha. “Certa vez, encontrei uma caixa com mais de 20 CDs e DVDs novíssimos, numa das regiões mais nobres da cidade. Eram restos de um fim de namoro”, conta Carlos Silva, um carioca que vive em Manhattan, e que também já resgatou uma pia nova em folha jogada em frente a um prédio.

Para mudar a mentalidade e hábitos da população, os freegans promovem workshops de conserto de bicicletas, de plantação de hortas, de reciclagem de plásticos, de corte e costura.

Manhattan: o paraíso do lixo

Para mudar a mentalidade e os hábitos dos novaiorquinos – cada habitante produz cerca de 3k de lixo sólido por dia – os freegans promovem workshops de conserto de bicicletas, de plantação de horta, de reciclagem de plásticos, de corte e costura e, também, trash tours

Mas há outra realidade assustadora: a quantidade infinita de comida jogada fora pelos 18 mil restaurantes da cidade, além dos supermercados e delicatessens. Por isso, a iniciativa mais famosa são os trash tours (ou tour pelo lixo), também conhecidos como dumpster diving (mergulho no lixão). Eles se reúnem em grupos que saem na calada da noite para vasculhar lixos de supermercados. Os alimentos achados são tantos, que muitos freegans acabam organizando festinhas para consumir os achados.

LIMPOS, EMBALADOS E VÁLIDOS
Numa segunda-feira de verão, resolvi acompanhar um grupo de freegans num trash tour. O local de encontro foi a praça de alimentação da Grand Central Terminal, imponente estação de trem, que data de 1913 e por onde circulam diariamente cerca de 125 mil pessoas. Em uma das mesas, um grupo de cerca de 10 freegans discutiam a leitura da semana: o livro “An unnatural order” (Uma ordem não-natural, numa tradução livre), do jornalista e ambientalista Jim Mason, que trata da destruição social e do meio-ambiente, incluindo a forma como, segundo Mason, o ser humano começou a consumir carne animal sem necessidade. Depois da reunião, todos seguiram para a frente do supermercado D’Agostino, na esquina da rua 39 com a Terceira Avenida. Lá, havia imensos sacos de lixos jogados nas calçadas – um deles, com mais de 60 pães feitos no dia.

“O tour levará uma hora e meia, passando por lixos de cinco estabelecimentos. Tenho sacos plásticos para quem quiser. Os supermercados não se incomodam conosco, mas detestam quando deixamos bagunça para trás – portanto, depois de vasculhar, fechem o saco de lixo”, anunciava a organizadora Janet Kalish, 46 anos, que vive no Queens. Professora de colegial, e adepta do freeganismo há quatro anos, é ela quem coloca ordem nos tours, delegando funções, como manter as calçadas desbloqueadas para os demais pedestres. “Obviamente coletamos apenas os alimentos limpos, embalados e dentro da validade. E quase todos são encontrados assim”, diz ela, enquanto resgatava caixas e mais caixas de papelão, que continham dezenas de potes de cream cheese, dentro da validade, do lixo vindo da loja de doces Donkin’ Donuts.

Anotei tudo o que vi: pães de centeio, bisnagas, queijos diversos. Alface, repolho, brócolis. Couve-flor, pepinos, cebolas. Bananas, morangos, melancias. Caixas de massa seca, de massa para panqueca e de massa para biscoitos. A lista é longa e soa como as compras da semana de qualquer dona-de-casa. Mas tudo foi encontrado apenas naquela noite. Todos os produtos, frutas e legumes estavam frescos, dentro das datas de validade e pronto para virarem banquete. Somavam-se centenas de dólares no lixo.

Nesse grupo heterogêneo nem todos os participantes eram radicais. Tratava-se de mães, estudantes e profissionais que partilhavam da mesma visão. Um deles é Alex Barnard, 21 anos, vegan e estudante de sociologia na Universidade de Princeton, uma das mais conceituadas do país. Durante o trash tour, ele panfletava o calendário de eventos dos freegans para os interessados. “Tento viver mais eticamente”, disse ele, segurando três baguetes. “Quero usar meu diploma para ingressar na área de direito e poder impactar diretamente a proteção ambiental” revela ele, que coleta alimentos no lixo há um ano, inclusive na universidade. “Quando acho alguns donuts, convido meus amigos para um lanchinho freegan. No começo ninguém aparecia. Hoje, aparecem uns dois”, conta ele. “Ser freegan não combina com o perfil daquela faculdade”, acrescenta.

Os passantes páram, olham, aplaudem. Duas senhoras de Viena comentavam sobre a fome no mundo, enquanto uma jovem bem vestida disse: “Vi vocês na televisão”. Já um rapaz que mora nas redondezas, disse ser advogado e questionou sobre o que via: “Vocês não estão deixando nada para os pobres”. A partir daí, começou uma discussão ponderada entre ele e Soozie Duncan, uma jovem fonoaudióloga freegan, que jamais compra alimentos.
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Para mudar a mentalidade e os hábitos dos novaiorquinos – cada habitante produz cerca de 3k de lixo sólido por dia – os freegans promovem workshops de conserto de bicicletas, de plantação de horta, de reciclagem de plásticos, de corte e costura e, também, trash tours

“Há tantas leis impostas pelas cidades e departamentos sanitários às empresas para se doar comida”, dizia o advogado, “que é mais fácil jogar tudo fora.

O mesmo acontece com as regras de não-poluição ao meio ambiente. Às vezes torna-se tão complicado seguí-las, que as empresas preferem pagar multas”. Soozie retrucava dizendo que era apenas uma questão de prioridade. Empregada de um hospital de Nova York, ela diz que quando cata comida no lixo sozinha, as pessoas pensam que ela é mendiga. “Já conhecemos quem são os campeões em desperdício – nesta avenida temos três supermercados D’Agostino, que estão no topo da lista – por isso fazemos o tour por aqui”, conta Soozie. “Até mesmo nós, vegans, recolhemos carnes e queijos dos lixos – damos para nossas famílias e animais de estimação.”

Vale lembrar, no entanto, que existem ONGs como Citymeals-on-Wheels, que recolhe alimentos que sobram de restaurantes afiliados e distribui para idosos, em Nova York. Só em 2007, 3 milhões de refeições foram servidas para 18 mil deles, um trabalho que envolveu 1500 voluntários. Há também o City Harvest, que dispõe de milhares de voluntários e 16 caminhões. Em 2008, a organização resgatou nove milhões de quilos das da indústria alimentícia e alimentou 260 mil pessoas por semana.

OS FREEGANS PELO MUNDO
O freeganismo surgiu na metade dos anos noventa, inspirado na filosofia californiana dos anos 60, quando o grupo teatral anarquista Diggers (Garimpeiros) doava comida e serviços gratuitamente. Mas o interesse mundial pelo movimento é recente. Na noite em que participamos do trash tour, os freegans também estavam acompanhados por uma televisão russa e por documentaristas coreanos. Há também dezenas de vídeos no YouTube, ensinando, inclusive, como selecionar os melhores alimentos do lixo.

Os principais canais de televisão do país já dedicaram tempo ao assunto, incluindo a história de Madelin Nelson, uma executiva que vive num belo apartamento em Nova York, mas jamais pisa em supermercado. Ela aparece com o marido, num jantar a dois, todo preparado com comida que ela pescou do lixo.

Já a necessidade de agregar freegans pelo país e pelo mundo tem criado comunidades virtuais, como a Freegan Magazine, uma revista online que surgiu para trocar informações e mapear grupos nos Estados Unidos, no Canadá e na Inglaterra. “Há dez anos as pessoas já faziam o que estamos fazendo hoje – mas sem menos atenção da mídia e de uma forma mais dispersa”, lembra Adam, com três bananas nas mãos. “As pessoas estão se dando conta que o capitalismo falhou: a fome continua, as doenças se alastram, as indústrias destroem os ecossistemas e os produtores de alimentos seguem devastando a Amazônia,” diz ele, que fundou há cinco anos o Freegans.info, uma fonte de informação na internet.

Naquela noite, ele voltou para “casa” com três sacos de alimentos e ainda convidou os demais a colher frutas de uma árvore da redondeza. Minha história foi outra. Ao buscar meu marido, faminto, no trabalho ainda naquela noite, escutei logo a pergunta: “O que você trouxe para eu comer?”. “Confesso que vi uma torta de chocolate apetitosa, mas não tive coragem de tirá-la do lixo”, respondi. Depois de ver a decepção estampada em seu rosto, prometo criar coragem da próxima vez.

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